Sobrevivência
em Ambientes Naturais: Fatos e Mitos
Vontade
de Ir para o Mato:
Se há algo que povoa o imaginário das pessoas, sobretudo
o masculino, é a ideia do homem sobrevivendo na mata e dos recursos da terra,
domando a natureza e sobrepujando os desafios do meio ambiente com o mínimo de
equipamentos e bastante testosterona para impulsionar suas aventuras.
Eu me arriscaria até a dizer que este cenário pode mesmo remeter a um longo período de nossa existência neste planeta e de algum modo, ainda presente em nossa memória. Porém, a distância tecnológica
e cronológica acabam nos levando a criar fantasias e conceitos que não se
aplicavam para os povos primitivos de antes, nem muito menos para os humanos
contemporâneos.
Hollywood
Graças ao cinema e às centenas de filmes do gênero já
produzidos e os programas de tv que acharam um novo segmento do entretenimento
de aventura a ser explorado, além de incontáveis canais de vídeos e fóruns de
discussão relacionados ao tema na Internet, muito se tem ouvido falar hoje em
dia sobre os termos: Sobrevivência na selva, técnicas primitivas de
sobrevivência, além, também, das técnicas de bushcraft ou mateiras, se preferirem.
Contudo, apesar de haver, notadamente, um número
considerável de boas informações lá fora, há também, ainda, muita fantasia e
desinformação permeando essa área, erroneamente difundida por aqueles
que, supostamente, são “peritos” no assunto, mas que acabam levando outros a se
exporem à riscos grandes desnecessários e, por muitas vezes, fatais como,
lamentavelmente, já ocorreu.
O Registro Arqueológico
Para entendermos um pouco melhor a questão do homem na
natureza selvagem, olhemos para aquilo que o registro arqueológico nos revela,
sobre alguns aspectos que, em geral, passam despercebidos para maioria das
pessoas. Em 1991 descobriram ao norte da Itália, uma múmia
congelada e preservada por mais de 5 mil anos de idade, chamada pelos
cientistas de Otzi, O Homem de Gelo. Além da múmia, foi encontrado, também, boa
parte de seu equipamento primitivo.
Destacamos aqui, apenas, alguns pontos que podemos verificar
pelo exemplo em questão. Otzi, O Homem de Gelo, continha uma série de itens
importantes e fundamentais para sua sobrevivência e cujos equivalentes modernos
podem ser encontrados hoje em dia com qualquer montanhista. A mesma lógica
utilizada pelo nosso amigo do gelo a 5300 anos atrás, continua a ser aplicada
hoje em dia.
Apontamos aqui um aspecto relacionado à
multifuncionalidade do equipamento do Otzi, cujo princípio ainda nos orienta:
Prefira objetos ou itens que tenham mais de uma função ou utilidade, se for
possível. O cinto que mantinha a perneira do Otzi erguida e cobrindo suas
pernas, servia, também, como kit de sobrevivência, uma vez que dentro nele,
havia vários itens menores indispensáveis para sua sobrevivência, como lâminas,
remédio, isca de fogo, entre outras coisas. Muito parecido com a configuração
contemporânea de um cinto/kit de sobrevivência comumente usado por milhares de
pessoas em todo o mundo.
Para cada objeto levado pelo Otzi, há um correspondente
atual que fará a mesma coisa, com um grau de desempenho melhor e mais rápido
que seus equivalentes pré-históricos, poupando muito tempo e calorias para o
ser humano moderno.
Tanto ontem como hoje, precisamos de abrigo, fogo, formas
de nos alimentar e hidratar e precisamos ter as condições básicas à nossa
disposição, para obtermos esses aspectos, uma vez estando em ambientes naturais
hostis. O homem só aperfeiçoou a forma como ele dava conta daquilo que
precisava, sempre visando um gasto menor de tempo e calorias.
Outra lição importante sobre o fato de que ele tinha e
levava consigo tudo aquilo que julgava necessário, é porque ele sabia que obter
tais recursos da natureza para uso imediato, na maioria das vezes não era
possível. Ou seja, ele tomava medidas prévias e se precavia.
Preparo Prévio
Na maior parte das vezes, o indivíduo terá muito pouco
controle de todos os fatores ou vetores envolvidos num cenário de sobrevivência
em ambientes naturais hostis. Assim sendo, o preparo prévio, traduzido hoje em
dia, principalmente, por seu kit de sobrevivência, se torna uma ferramenta
preciosa em tais situações, uma vez que ele te possibilita o mínimo de controle,
em uma posição que, por natureza e definição, já te limita parcialmente ou
totalmente o domínio e atuação.
Isso significa entrar no mato preparado, com itens que
vão poupar tempo e calorias e que te deixam mais independente de recursos ou
condições naturais que podem não ser favoráveis ou estarem disponíveis em um
momento crucial de vida ou morte.
A ideia contemporânea de sobrevivência na selva ou em
qualquer ambiente natural hostil é apenas por um período limitado de tempo.
Estatísticas americanas sobre situações de sobrevivência mostram que, em geral,
estamos falando de um cenário de 72 horas ou 3 dias, dentro dos quais o
sobrevivente sai vivo ou não. Claro que há situações em que este período pode
se estender por bem mais tempo, mas tais casos ocorrem menos.
Eu me lembro, em minha juventude, de sonhar em viver da
mata sozinho, por um longo tempo, caso eu quisesse ou precisasse, mas ao longo
de minha jornada nas matas, percebi que este desejo de viver sozinho, isolado,
completamente auto dependente e autossuficiente é uma fantasia que não traduz a
realidade humana ao longo de nossa história.
O fato, é que nós pouco podemos sozinhos, não importa
quanto conhecimento e experiência mateira nós venhamos a ter. Nosso sucesso em
nos manter com vida em tais situações de longos períodos se dará até o momento em
que ficarmos doentes e precisarmos de ajuda e cuidados de terceiros ou
tratamento médico.
Imagine ter de realizar as tarefas mais básicas e
simples, como pegar lenha para o fogo, fazer fogueiras, construir ou consertar
abrigos, coletar e tratar água, obter alimentos, deslocar por um terreno
acidentado, entre outras coisas, estando doente ou ferido.
Muito dificilmente, qualquer pessoa que esteja com cortes
ou fraturas infeccionadas, ou que esteja enferma, com muita dor ou enfraquecida
conseguiria dar conta de todos estes aspectos fundamentais para manter-se vivo
no mato.
Por isso, desde cedo em nossa história, a humanidade
procura o conforto e a segurança de seu grupo, primeiramente em estruturas de
clã, até chegarmos nas configurações urbanas atuais.
Mais uma vez, o registro arqueológico nos apresenta um
caso em que verificamos a importância do grupo na sobrevivência individual em
tempos de enfermidades. Em meio às ossadas de um grupo de homo-erectus, havia um indivíduo, cujas marcas na mandíbula
indicavam que ele havia sofrido uma forte infecção na boca, mas conseguiu
sobreviver a ela, uma vez que havia sinais de cicatrização, indicando uma
recuperação.
Para tal criatura ter vencido a doença, ele teve de ter
sido cuidado e alimentado com comida mastigada por outros, dada sua
incapacidade para realizar tal ação durante aquele período. Ou seja, se não
fosse pelos cuidados de seu clã, ele teria padecido por causa de sua
enfermidade e isso nos serve de ensinamento hoje em dia.
Pensarmos em autossuficiência em ambientes naturais
hostis, estando completamente só, por um longo tempo era e continua sendo uma
fantasia que poderá custar caro para aqueles que não aprenderam a lição número
01 da natureza: Humildade.
Kits
de Sobrevivência para que, Afinal?
Para respondermos à essa pergunta temos de entender que a
natureza não está contra nem a favor do sobrevivente. Ela é neutra e tem suas
regras.
Porém, aqueles indivíduos que encaram a natureza como um “inimigo a ser
vencido”, assumem uma posição arrogante e perigosa para si próprios. Cabe ao
sobrevivente se adaptar e se ajustar às condições impostas pelo ambiente. Por
isso levamos um kit moderno. Para ajudar a melhorar nossas chances de podermos superar
os desafios do ambiente e isso oferece ao indivíduo, o mínimo de controle em
situações que em sua essência e natureza, já não lhe deixam muitas opções de
ação e escolha.
Já recebi críticas, em alguns de meus vídeos que falavam
sobre a importância de se ter e saber usar um kit moderno de sobrevivência, em
que as pessoas diziam que eu deveria ensiná-las como fazer fogo com fricção,
caso elas não tivessem um isqueiro. Mas é exatamente o contrário. Pelo fato de
eu saber muito bem a realidade do fogo por fricção, em que uma grande variedade
de aspectos e fatores sobre os quais vc não tem controle algum, tem de estar
favoráveis para se aplicar a técnica, tais como o posicionamento correto do
corpo, o tipo de madeira certa, a umidade presente no ambiente e no material,
recursos suficientes disponíveis para se construir uma isca de fogo básica,
entre outras coisas, tudo isso, me leva a dar muito mais valor a um isqueiro a
gás simples e enfatizar a importância de se ter um consigo.
Não há qqer justificativa moderna para uma pessoa não ter
um isqueiro do tipo Bic, junto a si.
Ele é leve, não ocupa espaço no bolso, é barato e pode ser levado á bordo de
aviões comerciais, ônibus, trens, etc. Muitos já padeceram no passado por não
terem a garantia de uma chama tão rápida, em tão pouco tempo e sem nenhum
esforço físico, além do movimento do polegar. Há, ainda, um velho ditado no
meio dos praticantes das técnicas mateiras, que diz: Quanto mais aprendo sobre
como fazer fogo da forma primitiva, mais aprecio trazer um bic comigo! E é isso
mesmo.
As técnicas primitivas, mateiras e de bushcraft não devem
ser sua principal opção e linha de ação, mas devem representar um plano “b” ou
“z”, caso vc não tenha os recursos modernos disponíveis, dada a sua
complexidade e grau de dificuldade. O planejamento de sobrevivência deve ser
feito com maturidade e seriedade, entendendo sua realidade, o local e o momento
em que se encontra. Seu preparo tem de ser sólido, uma vez que sua improvisação
nunca o será! Não se planeja improvisar em tais situações.
Negligenciar tal realidade é agir de forma, no mínimo
irresponsável e arrogante. Estes dois aspectos combinados, em geral, levam à
tragédias fatais no mato.
Os Atletas e o Mato
Outro ponto que tende a ser valorizado em excesso é o
condicionamento físico. Já vi gente com muito pouca experiência ou conhecimento
das prioridades em situações de grande risco no mato, confiarem excessivamente
em sua habilidade física, capacidade de corrida ou condicionamento físico em
geral, para poder resolver os problemas que eles imaginam haver.
Essa mentalidade ainda é reforçada por certas abordagens
vistas em programas de tv, que acabam por enfatizar e superestimar um aspecto
que, apesar de sua importância e relevância, não seria capaz de salvar alguém,
na maioria dos cenários que pudéssemos levantar. Há incontáveis outros vetores
em atuação, para que o resultado seja determinado por apenas um fator exclusivo,
como o condicionamento físico do sobrevivente.
Aqui, a lista de fatores, ou vetores, determinando rumos,
acontecimentos e desdobramentos são tão variados quanto pudemos imaginar. Uma
decisão errada, uma curva ou virada na trilha despercebida, um abrigo mal
escolhido, um descuido com seu equipamento ou uma lâmina e panoramas
completamente diferentes podem ser determinados para pessoas expostas à tudo
que pode acontecer ao homem em ambientes naturais hostis.
Sobre certos vetores ou aspectos deste cenário, podemos
ter um grau maior ou menor de controle, sobretudo de tivermos recursos
disponíveis para atenuarem os efeitos e demandas desses cenários, como o
preparo prévio de emergência já mencionado. Ou seja, há coisas que vc controla
e dependem de sua resposta pessoal e
há outros aspectos sobre os quais vc não tem controle algum e nada ou quase
nada pode fazer para interferir.
Assim sendo, se tivermos que avaliar a importância de
qqer tipo de condicionamento que pudermos ter para tais situações de emergência
e sobrevivência, nós entenderemos que o condicionamento mental (ou preparo
psicológico) é muito mais importante e relevante para enfrentar essas situações
de grande stress e impacto para o ser humano, que o número de flexões alguém
pode fazer ou quantos km a pessoa é capaz de correr.
A Principal Ferramenta de Sobrevivência: Sua Mente
Nós já nascemos equipados com a ferramenta mais
importante para nosso sucesso em situações de sobrevivência: Nosso cérebro!
Ao percebermos a importância da atitude mental para
enfrentarmos os desafios impostos pela sobrevivência humana em ambientes
naturais hostis, poderemos compreender e trabalhar mais claramente os aspectos
gerais da nossa resposta para essas situações de risco.
No que tange aos aspectos da sobrevivência (vetores)
sobre os quais alguém tem controle, destacamos o eixo de resposta pessoal com
os elementos atuantes:
Aspecto
psicológico - Conhecimento (técnico & prático) - Equipamentos - Preparo
Físico
A nossa interferência e resposta para situações de
sobrevivência dependerá, exclusivamente, desses 04 elementos, mas há uma
importância muito grande em se perceber a participação e relevância de cada um
deles no eixo de resposta pessoal.
Hoje sabemos que 90% do sucesso de um indivíduo em uma
situação de emergência e ou sobrevivência é determinado por sua capacidade
mental em lidar com todos os aspectos que afetam profundamente o ser humano e
como ele responde à tais situações, uma vez estando sujeito à um grande stress
e tensão constantes.
Na verdade, todo seu conhecimento técnico e prático
relacionado à sobrevivência ou mesmo, ainda, os recursos modernos disponíveis
consigo, estarão sujeitos ao seu autocontrole para tomar as decisões certas e
agir da melhor forma possível para lidar com as demandas impostas por tais
cenários pesados e intensos.
Na maioria dos casos, uma atitude positiva e proativa, a
capacidade de resiliência, persistência e perseverança possuem um papel muito
mais relevante para o sucesso do sobrevivente, que seu condicionamento físico
ou quão bom e moderno seu equipamento seja.
Podemos destacar como exemplo, um caso ocorrido a alguns
anos atrás em que a tripulação de um navio naufragado se encontrou a deriva no
oceano por 2 semanas. Eles estavam em 2 botes bem equipados com tudo aquilo que precisavam para se manterem vivos por muito tempo e estavam ligados um ao
outro por um cabo de aproximadamente 20 metros. Todos expostos exatamente às
mesmas dificuldades e privações e dispondo dos mesmos bons recursos modernos
para lidarem com as demandas técnicas/práticas do cenário de sua luta pela vida.
O resultado final é que após 2 semanas no mar, apesar de muito abatidos, a tripulação de um dos botes saiu andando para dentro do navio
que lhes salvava, e a outra parte deles que estava no segundo bote, teve de ser
carregada para fora de sua boia salva-vidas e transportada para dentro do navio. Um de
seus integrantes, o capitão do barco naufragado, havia falecido pouco antes de
serem avistados e salvos.
Qual a razão para dois desfechos tão distintos para
pessoas expostas ao mesmo contexto e condições? A resposta é: A atitude mental
positiva, proativa e a vontade de viver da tripulação de uma das balsas
conseguiu manter seu moral auto o bastante para conseguirem obter os aspectos
básicos de sua sobrevivência e eles não se entregaram ao desespero, abandono,
falência psicológica e posteriormente, a falência física geral, ocorridas na
outra balsa. Lá seus membros não conseguiram lidar com todas as dificuldades de
seu cenário, por não terem o domínio mental crucial para continuar a agir
persistentemente todo o tempo. Eles se entregaram em seu desânimo, desgosto,
frustação e abandono e entraram em um estado mórbido de estagnação.
Concluíndo
Há inúmeros outros casos que poderíamos usar para
ilustrar a importância da atitude mental correta em situações de sobrevivência,
mas cremos que pelo exemplo mostrado acima, tiramos uma lição valiosa e que nos
ensina que: Um grande número de pessoas que falecem em situações de
sobrevivência morrem primeiramente em suas mentes, para somente depois
padecerem lhes seus corpos.
É na mente que está o segredo do sucesso do sobrevivente.
O jogo é ganho ou perdido lá, não importa quão ruim a situação possa parecer
externamente.
Mais uma vez enfatizamos, é a capacidade individual para se
adaptar às condições adversas, que permitirá o sucesso da sobrevivência e não
sua força física.Diferentemente do que muitos pensam, na natureza não é o
mais forte que sobrevive, mas aquele cuja capacidade de adaptação é mais
eficiente para se ajustar às condições impostas pela natureza.
Como dito anteriormente, não podemos lutar contra a
natureza, pois essa luta já está perdida para nós.
Por isso moramos em
ambientes urbanos modernos sobre os quais temos controle, como em nossas casas
e cidades. Uma vez na natureza, aprendemos que é ela quem manda e as coisas são
como são. Se vc não se adapta, vc paga um preço. Isso é simples assim.
Foi exatamente essa
capacidade de “dançar conforme a música” do ser humano, que possibilitou
sairmos da África e nos deslocarmos e povoarmos outras áreas inóspitas e
perigosas do planeta terra. Sempre jogando com a natureza e não contra ela. Com
humildade o bastante para entender nossa real fragilidade e insignificância
frente às forças colossais que atuam sobre o planeta.
Percebendo que não somos
“a prova de tudo” e que na “luta” do homem contra a natureza, nós somos os
perdedores e a natureza, a vencedora!